Apreensão de Mercadorias: uma releitura da súmula 323 do Supremo Tribunal Federal - Cursos preparatórios para concursos | Themas Cursos ®

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Apreensão de Mercadorias: uma releitura da súmula 323 do Supremo Tribunal Federal

SUMÁRIO: 1. CONTEXTUALIZAÇÃO. 2. DA LEGALIDADE DE APREENSÃO DE MERCADORIAS COMO MEIO DE COIBIR INFRAÇÕES MATERIAIS DE EFEITOS PERMANENTES. 3. DO DISTINGUISHING. 4. CONCLUSÃO.

 

1.Contextualização

É muito comum no dia-a-dia do advogado público a demanda judicial, cujo pedido se restringe a liberação de uma mercadoria apreendida no posto fiscal de determinado Estado da Federação em razão de eventual nota fiscal inidônea vinculada àquela operação.

Normalmente este tipo de demanda já chega para a Fazenda Pública com a liminar deferida e a mercadoria liberada, gerando inúmeras implicações futuras e, ainda, possibilitando que esta mercadoria sem nota fiscal- ou com nota fiscal inidônea- esteja apta para circular juridicamente.

Constantemente se alega que há nítido caráter de sanção-política, com arrimo no enunciado de súmula 323 do Supremo Tribunal Federal sem, contudo, ser realizada uma análise aprofundada dos motivos que levaram à apreensão ou, ainda, se realmente estão presentes todas as características necessárias para que haja a configuração da sanção.

Assim, o intuito do presente artigo é analisar a responsabilidade tributária do contribuinte que pratica infração material de efeitos permanentes, devendo-se analisar o caso discutido e realizar a diferenciação com o que deu origem à Súmula 323 do STF.

2. LEGALIDADE DE APREENSÃO DE MERCADORIAS COMO MEIO DE COIBIR INFRAÇÕES MATERIAIS DE EFEITOS PERMANENTES 

Com o presente trabalho, pretende-se discutir a legalidade da apreensão como forma de coibir as infrações materiais de trato sucessivo, ou seja, contribuintes que possuem nota fiscal inidônea, seja porque o quantitativo nela constante não condiz com a realidade, porque reutilizou nota fiscal, foi cancelada, não possui nota fiscal ou, ainda, por não ter realizado o recolhimento do ICMS em razão de algum regime especial a que esteja submetido e presente na legislação estadual do ente federativo.

A apreensão de mercadoria nos exemplos citados não se trata de um ato arbitrário e ilegal, pois a atitude do Fisco visa garantir o interesse público primário, mantendo o mercado em funcionamento regular, pois, caso se permita que um determinado contribuinte realize a circulação de mercadorias com nota fiscal inidônea haverá quebra da livre concorrência, um dos princípios gerais da ordem econômica previsto expressamente no artigo 170, inciso IV da Constituição Federal. Ora, ao deixar de pagar obtém nítida vantagem frente àquele contribuinte que realizou o recolhimento no tempo certo e adequadamente.

Ainda, é importante salientar que não há de se discutir a má fé ou boa fé do infrator. O próprio Código Tributário Nacional que a responsabilidade por infração tributária, no pertinente à penalidade é objetiva:

Art. 136. Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato

Acresce-se que a consagração das diretrizes constitucionais impostas à Administração Pública, sobretudo a necessidade de prestação dos serviços públicos, satisfazendo as necessidades coletivas, demanda a obtenção dos recursos financeiros.

Nessa linha, a atividade tributária de arrecadação representa a maior fonte de renda estatal e, consequentemente, o alicerce de toda a atividade administrativa, assim considerada a gestão de bens, serviços e interesses públicos.

Dessa forma, podemos dizer que uma arrecadação tributária eficaz é imprescindível para que as políticas públicas sejam realizadas e, consequentemente, se tenha qualidade em serviços públicos.

Para tanto, o poder fiscalizatório tributário necessita de certas prerrogativas que, representam nítida concretização do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular.

Constituição Federal ressalta a primazia da atividade fazendária:

Art. 37. (...)

XVIII - a administração fazendária e seus servidores fiscais terão, dentro de suas áreas de competência e jurisdição, precedência sobre os demais setores administrativos, na forma da lei;

XXII - as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio.

Art. 145.  (...)

§ 1º - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

Ressalte-se que a restrição de direitos individuais objetivando a satisfação de interesses coletivos encontra respaldo no poder de polícia da Administração, materialização do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado que justifica a intervenção do Estado na propriedade particular, desde que realizada a restrição com proporcionalidade.

Ainda, sendo o poder de polícia atividade discricionária de que dispõe a Administração Pública, para fins de restringir o uso e gozo de determinados direitos individuais em benefício de toda a coletividade,compete a própria administração a eleição dos meios mais eficazes para sua consecução. Busca-se a proteção de bens, direitos e bem-estar econômico da sociedade.

Como forma de cessar a infração material de efeitos permanentes normalmente as legislações estaduais preveem, a apreensão da mercadoria como meio adequado e conveniente para coibir o ilícito. Com exemplo, citamos a legislação paulista que foi alvo da ADI 395, mas que, acertadamente, o Supremo Tribunal Federal declarou a sua constitucionalidade:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 163, § 7º, DA CONSTITUIÇÃO DE SÃO PAULO: INOCORRÊNCIA DE SANÇÕES POLÍTICAS. AUSÊNCIA DE AFRONTA AO ART. 5º, INC. XIII, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. 1. A retenção da mercadoria, até a comprovação da posse legítima daquele que a transporta, não constitui coação imposta em desrespeito ao princípio do devido processo legal tributário. 2. Ao garantir o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, o art. 5º, inc. XIII, da Constituição da República não o faz de forma absoluta, pelo que a observância dos recolhimentos tributários no desempenho dessas atividades impõe-se legal e legitimamente. 3. A hipótese de retenção temporária de mercadorias prevista no art. 163, § 7º, da Constituição de São Paulo, é providência para a fiscalização do cumprimento da legislação tributária nesse território e consubstancia exercício do poder de polícia da Administração Pública Fazendária, estabelecida legalmente para os casos de ilícito tributário. Inexiste, por isso mesmo, a alegada coação indireta do contribuinte para satisfazer débitos com a Fazenda Pública. 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente.(STF - ADI: 395 SP, Relator: Min. CÁRMEN LÚCIA, Data de Julgamento: 17/05/2007, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-082 DIVULG 16-08-2007 PUBLIC 17-08-2007 DJ 17-08-2007 PP-00022 EMENT VOL-02285-01 PP-00052 RTJ VOL-00201-03 PP-00823 RDDT n. 145, 2007, p. 181-185 RT v. 96, n. 866, 2007, p. 101-106)

Não há, portanto, abuso de poder, nem na modalidade excesso de poder, muito menos na modalidade desvio de poder. Pelo contrário, a prática instrumentaliza mecanismo imprescindível para a proteção da legalidade tributária, evitando a dispersão da mercadoria pelo Estado.

Alguns contribuintes afirmam que a apreensão só seria legítima e poderia ocorrer até o momento em que a autoridade fiscal lavrasse o auto de infração, pois, neste momento, alegam que estaria comprovada a posse legítima. É preciso analisar com certo cuidado, pois a lavratura do auto de infração não tem o condão de transformar uma nota fiscal inidônea em nota fiscal idônea. Em verdade, posse legítima é comprovada com a emissão de uma nota fiscal correta para aquelas mercadorias. O motivo é bem simples. Com a lavratura do auto de infração vai haver o lançamento do ICMS, mas a mercadoria continuará a circular posteriormente sem as notas fiscais necessárias. 

A lei e a Constituição Estaduais podem conferir aos Estados da Federação a prerrogativa de apreender bens quando a nota fiscal for considerada inidônea. Assim, temos a competência(o que afasta o excesso de poder), e a finalidade do ato administrativo – proteção ao bem comum - (o que afasta, de pronto, o vício na modalidade desvio)

Código Tributário Nacional bem define o instituto:

Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Acrescente que o contribuinte tem o dever expressamente previsto de, em toda e quaisquer hipóteses, circular com mercadorias acompanhadas de documentos fiscais idôneos, considerando-se em situação irregular presumida as desacompanhadas dos documentos fiscais exigidos. Idoneidade significa não apenas estar acompanhada de uma nota fiscal, mas também de uma nota fiscal regularmente emitida, com o pagamento do tributo devido. Como exemplo, cite-se a legislação do Estado de Mato Grosso:

“Art. 35-A. As mercadorias e serviços, em qualquer hipótese, deverão estar sempre acompanhadas de documentos fiscais idôneos. (Acrescentado pela Lei 7.364/00)

Parágrafo único. Para os efeitos desta lei, consideram-se em situação fiscal irregular as mercadorias ou serviços desacompanhados de documentos fiscais exigidos ou acompanhados de documentação fiscal inidônea.”

Importante destacar que, como qualquer atividade administrativa, a fiscalização tributária é um poder-dever que precisa se ater aos limites legais (princípio da legalidade), além de dever respeitar a proporcionalidade.

A legitimidade da apreensão de mercadorias é bastante polêmica, defendendo alguns que se trata de sanção política, meio de compelir o contribuinte/responsável a efetuar o pagamento dos débitos tributários, o que deveria ser feito por meios ordinários de cobrança.

Ocorre que tal premissa desconsidera as prerrogativas constitucionais acima mencionadas, sobrepondo o interesse individual de propriedade ao interesse social maior de satisfativa arrecadação tributária.

Isso se verifica, sobretudo, quando a medida de apreensão, de caráter cautelar, está amparada em legislação estadual, cujas especificidades locais impõem medidas mais drásticas para uma eficiente arrecadação tributária.

Outrossim, é importante relembrar o conceito de "sanção política": forma de cobrança de tributos por meios indiretos, impedindo ou dificultando o exercício de uma atividade econômica licitamente desenvolvida pelo contribuinte devedor. Ou seja, são formas  “enviesadas de constranger o contribuinte, por vias oblíquas, ao recolhimento do crédito tributário” (STF ADI 173).

Contudo, para ser considerada sanção política a medida deve ser desproporcional. O simples fato de a Administração Pública adotar medidas coercitivas ou restritivas de direitos de contribuintes como meio de impedir a continuidade de uma infração permanente não significa que isso seja considerado sanção política.

No caso prático, embora haja uma restrição ao contribuinte, afinal, o Poder de Polícia, em sua essência, gera restrição, não constitui a apreensão medida considerada desproporcional ou desarrazoada.

A apreensão de mercadorias como meio de coibir práticas ilícitas tributárias e, ainda, manter intacta a livre iniciativa é medida adequada às finalidades do instituto. É um mecanismo extrajudicial de grande importância, estimulando a boa-fé do contribuinte, a emissão de notas fiscais idôneas, incrementa a arrecadação tributária, reduz custos com cobrança de penalidades, promove justiça fiscal e, por fim, evita que determinados contribuintes gozem de vantagens concorrenciais indevidas.

Assim, percebam que com a apreensão de mercadorias é respeitada a proporcionalidade em sentido estrito, pois o benefício coletivo é muito maior que a restrição individual. Dessa forma, além de adequada e necessária, é proporcional em estrito senso.

Se no ente federativo houver legislação possibilitando a apreensão de mercadorias, desde que não seja como meio de constrição para cobrança de tributos vinculados à uma operação ANTERIOR, a apreensão de mercadorias tem amparo legal.

No caso, não se sugere utilizar a apreensão de mercadoria como forma de cobrar um tributo/penalidade que se refira a uma operação anterior. Perceba que mercadorias sem nota fiscal, com nota fiscal inidônea ou sem o recolhimento prévio do ICMS em razão de débito no sistema de Conta-Corrente Fiscal são impedidas de transitar pelo território nacional, ante a possibilidade real e concreta de ingressarem no comércio, sem que haja recolhimento do tributo eventualmente devido.

A apreensão da mercadoria é realizada com base na legislação dos estados membros, devendo ser considerada regular, não se aplicando, portanto, a Súmula 323 do STF quando não se referir à cobrança de tributo não recolhido em operação ANTERIOR. Ora, se a cobrança será realizada em decorrência de inidoneidade de nota fiscal vinculada a operação não se trata de sanção política, mas sim um meio para regularizar a situação do bem comercializado pelos infratores.

O intuito da súmula é justamente a proteção à livre atividade econômica licitamente praticada, não proteger o ilícito, o comerciante que promove o trânsito de mercadorias irregulares. Os direitos e garantias fundamentais não se prestam à salvaguarda de práticas ilícitas

Assim, a apreensão da mercadoria deve ocorrer sempre que a “mercadoria estiver desacompanhada de nota fiscal, comprovante do diferencial de alíquotas (se for o caso), estiver submetida ao regime especial de recolhimento do ICMS sem comprovante de pagamento deste; ou se verificar qualquer outra espécie de infração material à legislação tributária” (REEXAME NECESSÁRIO 79311/2011 - TJMT)

A medida também encontra respaldo em algumas Constituições Estaduais. Por exemplo: no artigo 150, § 5º, da Constituição Estadual de Mato Grosso e em remansoso entendimento do Tribunal de Justiça de Mato Grosso. É o que se infere:

TRIBUTÁRIO - AGRAVO DE INSTRUMENTO - MANDADO DE SEGURANÇA - APREENSÃO DE MERCADORIAS - INIDONEIDADE DA NOTA FISCAL - AUSÊNCIA DA RELEVÂNCIA DOS FUNDAMENTOS - PREENCHIMENTO INCORRETO DO DOCUMENTO FISCAL - IMPOSSIBILIDADE DE LIBERAÇÃO DO PRODUTO - RECURSO IMPROVIDO. Para obter liminar mandamental, o impetrante deve evidenciar a relevância dos fundamentos, os quais deverão estar intrinsicamente ligados ao perigo de dano irreparável ou de difícil reparação. E possível a limitação do tráfego interestadual, sobretudo quando o produto transportado está desacompanhado de nota fiscal idônea. Produtos destinados a mostruário devem estar acompanhados de nota fiscal preenchida de acordo com a legislação tributária estadual, sob pena de ser considerada inidônea, o que dá ensejo à apreensão da mercadoria pelo Fisco. (Agravo de Instrumento n.º 24275, Relatora Desembargadora Clarice Claudino da Silva, 2010). (destaques nossos)

RECURSO DE APELAÇÃO - MANDADO DE SEGURANÇA -APREENSÃO E RETENÇÃO DE MERCADORIA PELO FISCO - TRÂNSITO COM NOTAFISCAL IRREGULAR - INFRAÇÃO MATERIAL À LEGISLAÇÃO TRIBUTÁRIA - LEGALIDADE - INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 323 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - SENTENÇA RATIFICADA - RECURSO DESPROVIDO. A apreensão e retenção de mercadorias pelo Fisco, quando a mercadoria transportada está acompanhada de nota fiscal inidônea, se revestem de legalidade, em razão do recolhimento a menor do tributo, consumando infração material à legislação tributária. Hipótese vertente que não se ajusta ao sentido da Súmula 323 do Supremo Tribunal Federal. (TJMT, Apelação em Mandado de Segurança n.º 25013, Relator Desembargador Evandro Stábile, 2009)

Não há, portanto, qualquer vício de legalidade nos Termos de Apreensão e Depósito lavrados pelos Agentes de Tributos Estaduais – que determinam a apreensão das mercadorias sem documentação fiscal idônea e lançam, de ofício, o ICMS que deveria ter sido recolhido de forma antecipada.

Referido entendimento afigura-se completamente consentâneo com os aspectos fáticos atinentes à matéria. 

3. Do distguishing

O artigo 113, §2º, do Código Tributário Nacional traz o conceito de obrigação acessória: “A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos”.

Quando a conduta do contribuinte constituir uma infração material de caráter permanente, devido ao fato das mercadorias estarem desacompanhadas de documentação fiscal idônea, infringindo a legislação estadual no pertinente à obrigações acessórias daquela determinada operação, será legítima a apreensão.

Imagine o caso em que a fiscalização in loco percebe a existência de inconsistência entre a carga transportada e a indicada na nota fiscal.

Sobre o Autor

Bruno Menezes Soutinho

Procurador do Estado de Pernambuco (1º lugar). Ex-Procurador do Estado de Mato Grosso. Aprovado na PGM Salvador, PGM Palmas, PGM São Luís (14º Lugar), PGE Maranhão (7º lugar), PGM Fortaleza, PGE/SE. Coautor do livro "Curso de Peças e Pareceres - Advocacia Pública - Teoria e Prática" pela Editora JusPodivm.