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Tem dias que até o gás falta

TEM DIA QUE ATÉ O GÁS FALTA

Algo me fez levantar mais cedo que de costume naquele dia. Gel no cabelo, aprumado o costume, dirigi-me ao trabalho. Mal iniciei o trajeto, o telefone noticiou sua existência:
- Jean, bom dia! Acabei de ver pelo jornal que os feirantes do Jardim América estão fazendo uma manifestação que parou o trânsito. O Sr. Martins me ligou e pediu sua presença no local. 
A voz da Lupe, assistente social de ofício e de paixão, não deixava dúvidas quanto à gravidade do chamado.
- O que ocorreu? O que reivindicam?
- A Justiça determinou a saída deles do local.
-E a Justiça disse onde eles poderiam continuar trabalhando?
- Não sei. Mas parece que sairão hoje. 
Antes mesmo de me despedir da ligação, contornei rumo à feira. 
Lá pelo meio do extenso caminho, o telefone tocou novamente. Logo vi que não era apenas eu que havia acordado cedo. O dia prometia.
- Dr. Jean, bom dia! D. Maria está aqui novamente. 
- Ela conseguiu enterrar o irmão?
- Não, doutor. 
- Deixe-me falar com ela, por favor. 
D. Maria havia solicitado atendimento na tarde do dia anterior, uma quinta-feira. Ela precisava enterrar o corpo do irmão, pessoa em situação de rua, que não tinha registro de nascimento. Sem esse registro, o cemitério não abria as portas. Tracei o plano: deixei a petição pronta, articulei com o defensor plantonista e solicitei a D. Maria que levasse a declaração de óbito expedida pelo médico. Deixei meu telefone pessoal para algum desvio no roteiro.
- D. Maria, o que deu errado no que combinamos? A senhora levou para o defensor o documento que estava pendente?
- Sim, doutor. Trouxe o papel amarelo, o homem olhou e me mandou vir hoje cedo falar com o senhor.
Havia um erro grave de comunicação que precisava identificar para que não se repetisse. Mas não era a hora. O corpo ainda aguardava. 
- Dona Maria deixe, por favor, o documento amarelo aí, que ingressarei com o pedido de alvará judicial. Verei apenas se farei pela via normal ou se no plantão. 
Tempo em que cheguei à feira. A quantidade de viaturas e de pessoas dava uma dimensão do nível da confusão. 
A indumentária que os profissionais do direito são obrigados a usar não me  deixou passar despercebido. 
- Doutor, o senhor é o defensor?
- Sim. O que ocorreu, Seu Martins?
- O juiz quer que a gente saia hoje, doutor. Olhe o papel. 
A decisão dava um prazo para que o Município retirasse os feirantes. Os moradores queriam que a praça fosse utilizada como uma praça. Reclamaram no MP. Uma ação foi ajuizada.
A decisão era clara. 
Reuni os feirantes. As sombras existentes não abrigavam tanta gente. O sol não parecia se importar com isso. Em todos os semblantes, a aflição que resultava da incerteza. 
Tentei, quanto pude, traduzir a intrincada linguagem jurídica. 
- Mas não dá para recorrer, doutor?
- Dá. Irei, inclusive. Mas ainda que entre com o pedido hoje, não haverá tempo hábil para impedir o cumprimento da decisão. 
- Doutor, pelo menos teremos tempo de tirar nossas coisas?
- Sim. Estarei com vocês. Não haverá violência e nem pressa. 
Ainda hoje me pergunto de onde saiu essa certeza. De alguma forma, ela ajudou apaziguar os ânimos.  Debalde...
- Ninguém vai ser despejado hoje! Só vão nos tirar daqui na marra! 
Era o deputado Maurício, convicto de sua decisão. Os aplausos que seguiram sepultavam todo o esforço argumentativo do defensor. Em segundos, nem mais atenção tinha. 
Desalentado, baixei a cabeça, olhei para o celular. Lembrei-me do corpo. Aproveitei o tempo que o discurso do deputado me deu para articular o enterro. Poderia ingressar com o pedido naquele mesmo dia. Sou uma pessoa esperançosa. Mas acreditar que haveria um juiz “desocupado” naquela tarde de sexta para apreciar o meu pedido era abusar da sorte. A solução seria aguardar o plantão. 
Liguei para dois colegas que me apontaram o mesmo rumo. 
Vi que o parlamentar não havia alcançado o ápice ainda. Dava tempo para uma outra ligação:
- Dona Maria, ingressarei com o seu pedido no plantão de hoje.
- Que horas, doutor?!
- Às 17h. 
-  Não dá para esperar. Vou chamar a imprensa. 
- Dona Maria, se der entrada hoje à tarde, correremos o risco de só sair a decisão na segunda. É o melhor caminho.
- Doutor, o corpo está na minha sala e o formol só aguenta até às 16h. Não temos dinheiro para pagar outro. 
- Não entendi. A senhora não havia me dito que ele estava no IML?
- Doutor, quando fui pegar o papel amarelo, ele foi liberado. Tá aqui. 
- Eita. D. Maria! Vou achar uma alternativa. Só mais um instante.
Desliguei. Se não tivesse o sol, a cabeça já estaria suficientemente quente. 
O telefone toca novamente. 
Era Dona Lili. Entre as suas especialidades, a que mais me impressiona é a de adivinhar a melhor hora de me ligar. 
- Meu genro, desculpe-me o incômodo. Só liguei porque é urgente. 
- Diga, dona Lili. 
- O gás acabou.
- A senhora já ligou para reporem? 
- Para três lugares e ninguém atende. A panela estava no fogo. O que faço?
Desviei o olhar em busca de um vento fresco. O deputado fazia sinal para que me aproximasse.
Encostei na amendoeira. Acharia uma solução para todos os males. Fui buscar socorro no WhatsApp. Sempre há nele uma mensagem de autoajuda para esses momentos. 
A primeira que vi foi a do compadre:
- Jean, não se esqueça de que sua palestra será às 13h de hoje. 


(A PARTE 2 será publicada em breve)
Jean Nunes

Sobre o Autor

Jean Nunes

Defensor Público estadual (aprovado em 1º lugar), mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão (aprovado em 1º lugar), Professor Assistente da Universidade Estadual do Maranhão (aprovado em 1º lugar).