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Quiz 34

O Secretário de Segurança Pública formulou consulta à Procuradoria Geral do Estado questionando a viabilidade jurídica de manejo da denominada “autotutela da posse”, a

qualquer tempo, em casos de esbulhos possessórios praticados sobre imóveis estaduais e com emprego de força policial.

            A consulta é motivada pelo crescente número de invasões de prédios estaduais, por diversos motivos, especialmente políticos, salientando, ainda, que o emprego de ações
possessórias é meio pouco eficaz, pois o juízo possessório não admite discussão alheia à posse, o que atrasa a recuperação dos imóveis.

           Considerando a situação acima desenvolvida, responda a consulta, propondo uma solução jurídica ao caso concreto, por meio de um texto dissertativo que aborde, necessariamente, os seguintes temas, relacionando-os com a situação em questão:

            a) O regime jurídico dos bens públicos e a sua classificação;

            b) O instituto da “polícia do domínio público”;

            c) A autotutela possessória e o desforço imediato;

            d) A possibilidade jurídica de posse de bens públicos.

            Comentários

         a) Os bens públicos são classificados, de acordo com o art. 99 do CC/02, em de uso comum do povo, de uso especial ou dominicais, segundo sua destinação ou afetação. Conforme esse critério, os bens públicos de uso comum do povo são aqueles destinados, por natureza ou por lei, ao uso coletivo; os de uso especial são os utilizados pela Administração para a satisfação de seus objetivos; sendo os dominicais aqueles que não têm destinação pública.

         Quanto ao regime jurídico dos bens públicos, o aluno deve destacar, de forma breve, as suas características, quais sejam, impenhorabilidade, imprescritibilidade, inalienabilidade ou alienabilidade condicionada e impossibilidade de oneração

        b) O regime jurídico dos bens públicos e a necessidade de preservá-los para que o interesse público não seja prejudicado acarretam para a Administração prerrogativas e ônus nessa matéria. Na doutrina, o conjunto de tais prerrogativas e ônus recebe o nome de “polícia dos bens públicos” ou “polícia do domínio público”.

      O termo “polícia” deve ser entendimento como fiscalização, vigilância e adoção de medidas para preservar os bens públicos. Assim, para preservar os bens contra a apropriação de terceiros, a Administração Pública pode adotar medidas fortes, por si própria, utilizando mesma força, para retirá-los de quem os detenha ilegalmente.

       Sobre o tema sob análise, Hely Lopes Meirelles (em Direito Administrativo Brasileiro) e Odete Medauar (em Direito Administrativo Moderno) sustentam, em suma, a desnecessidade de o Poder Público ir a juízo para repelir injusta invasão de bens públicos, pois o ato de defesa do patrimônio público é autoexecutável. Leciona a autora:

O regime jurídico dos bens públicos e a necessidade de preservá-los para que o interesse público não seja prejudicado acarretam para a Administração prerrogativas e ônus nessa matéria. Na doutrina, o conjunto de tais prerrogativas e

ônus vem recebendo a denominação de polícia dos bens públicos ou polícia do domínio público. (...) Para preservação os bens contra apropriação e terceiros, a Administração poderá adotar medias fortes, por si própria, utilizando mesmo a força, para retirá-los de quem os detenha ilegalmente; para alguns autores, tal conduta da Administração seria um desdobramento do princípio da autoexecutoriedade. (MEDAUAR, Odete, Direito Administrativo Moderno, 18ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 286).

          Hely Lopes Meirelles complementa:

Observamos que a utilização indevida de bens públicos por particulares, notadamente a ocupação de imóveis, pode – e deve – ser repelida por meios administrativos, independentemente de ordem judicial, pois o ato de defesa do patrimônio público, pela Administração, é autoexecutável, como o são, em regra, os atos de polícia administrativa, que exigem execução imediata, amparada pela força pública, que isto for necessário. (MEIRELLES, Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, 41ª edição, São Paulo: Malheiros, p. 627).

 

            Desse modo, ao Poder Público é facultado manter ou retomar a posse de seus bens públicos em caso, respectivamente, de turbação ou esbulho, independentemente de ordem judicial. Cuida-se de desdobramento da autotutela administrativa e, também, do atributo da executoriedade dos atos administrativos.

           c) Como se sabe, até mesmo o particular, de forma excepcional, pode, em caso de turbação ou esbulho, exercer a autotutela da posse, contanto que o faça logo, consoante preceitua o art. 1.210, § 1º, do Código Civil; o particular está adstrito, no entanto, a um requisito temporal, ou seja, deve atuar de forma rápida, sob pena de não poder exercer mais a
autotutela.

           Em contrapartida, a Administração Pública pode exercer tal direito a qualquer tempo, pois, naturalmente, não se trata de um mero poder, mas de um verdadeiro dever do Poder Público de garantir a posse e o uso de seus bens, conforme a destinação que lhes foi dada. Quanto ao tema, vale a pena a leitura de interessante Parecer da PGE/SP, clicando aqui. 

           d) Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade (art. 1.196, do CC). Isto é, para se ter posse, basta o exercício de um dos atributos do domínio, sendo possuidor quem, em seu próprio nome, exterioriza alguma das faculdades da propriedade, seja ele proprietário ou não.

           O ocupante de bem público é considerado mero detentor da coisa e, por conseguinte, não há que se falar em proteção possessória, nem em indenização por benfeitorias ou acessões realizadas, por configurar desvio de finalidade (interesse particular em detrimento do público), além de violação aos princípios da indisponibilidade do patrimônio público e da supremacia do interesse público. Quanto ao tema, veja-se a jurisprudência do STJ:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. OFENSA AO ART. 1.022 DO CPC/2015 NÃO CONFIGURADA. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. OCUPAÇÃO DE ÁREA PÚBLICA POR PARTICULARES. CONSTRUÇÃO. BENFEITORIAS. INDENIZAÇÃO.
IMPOSSIBILIDADE.
[...]
2. A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que, configurada a ocupação indevida de bem público, não há falar em posse, mas em mera detenção, de natureza precária, o que afasta o direito à indenização por benfeitorias.
3. Recurso Especial não conhecido.
(REsp 1701620/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/12/2017, DJe 19/12/2017)

 

           Portanto, a natureza jurídica da ocupação de área pública por particular é de mera detenção; em razão disso, é juridicamente impossível que um particular que esteja ocupando irregularmente um bem público ajuíze ação de reintegração ou de manutenção de posse contra o Poder Público.

           A posição acima exposta possui uma exceção: se dois particulares estão litigando sobre a ocupação de um bem público, o Superior Tribunal de Justiça passou a entender que, neste caso, é possível que, entre eles e quanto aos bens públicos dominicais, sejam propostas ações possessórias (reintegração, manutenção, interdito proibitório).

         Desse modo, para o entendimento atual do STJ, é cabível o ajuizamento de ações possessórias por parte de invasor de terra pública desde que contra outros particulares. Existem decisões das duas Turmas do STJ nesse sentido: STJ. 3ª Turma. REsp 1.484.304-DF, Rel. Min. Moura Ribeiro; e STJ. 4ª Turma. REsp 1.296.964-DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão. Veja- se:

 

RECURSO ESPECIAL. POSSE. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. BEM PÚBLICO DOMINICAL. LITÍGIO ENTRE PARTICULARES. INTERDITO POSSESSÓRIO. POSSIBILIDADE. FUNÇÃO SOCIAL. OCORRÊNCIA.
1. Na ocupação de bem público, duas situações devem ter tratamentos distintos: i) aquela em que o particular invade imóvel público e almeja proteção possessória ou indenização/retenção em face do ente estatal e ii) as contendas possessórias entre particulares no tocante a imóvel situado em terras públicas.
2. A posse deve ser protegida como um fim em si mesma, exercendo o particular o poder fático sobre a res e garantindo sua função social, sendo que o critério para aferir se há posse ou detenção não é o estrutural e sim o funcional. É a afetação do bem a uma finalidade pública que dirá se pode ou não ser objeto de atos possessórias por um particular.
3. A jurisprudência do STJ é sedimentada no sentido de que o particular tem apenas detenção em relação ao Poder Público, não se cogitando de proteção possessória.
4. É possível o manejo de interditos possessórios em litígio entre particulares sobre bem público dominical, pois entre ambos a disputa será relativa à posse.
5. À luz do texto constitucional e da inteligência do novo Código Civil, a função social é base normativa para a solução dos conflitos atinentes à posse, dando-se efetividade ao bem comum, com escopo nos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana.
6. Nos bens do patrimônio disponível do Estado (dominicais), despojados de destinação pública, permite-se a proteção possessória pelos ocupantes da terra pública que venham a lhe dar função social.
7. A ocupação por particular de um bem público abandonado/desafetado - isto é, sem destinação ao uso público em geral ou a uma atividade administrativa -, confere justamente a função social da qual o bem está carente em sua essência.

8. A exegese que reconhece a posse nos bens dominicais deve ser conciliada com a regra que veda o reconhecimento da usucapião nos bens públicos (STF, Súm 340; CF, arts. 183, § 3°; e 192; CC, art. 102); um dos efeitos jurídicos da posse - a usucapião - será limitado, devendo ser mantido, no entanto, a possibilidade de invocação dos interditos possessórios pelo particular.

9. Recurso especial não provido.

(REsp 1.296.964/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA,
julgado em 18/10/2016, DJe de 07/12/2016).

PROCESSUAL CIVIL. ÁREAS PÚBLICAS DISPUTADAS ENTRE PARTICULARES. POSSIBILIDADE DO SOCORRO ÀS DEMANDAS POSSESSÓRIAS.
1. A ocupação de área pública, sem autorização expressa e legítima do titular do domínio, não pode ser confundida com a mera detenção.
2. Aquele que invade terras e nela constrói sua moradia jamais exercerá a posse em nome alheio. Não há entre ele e o proprietário ou quem assim possa ser qualificado como o que ostenta jus possidendi uma relação de dependência ou subordinação.
3. Ainda que a posse não possa ser oposta ao ente público senhor da propriedade do bem, ela pode ser oposta contra outros particulares tornando admissíveis as ações possessórias entre invasores.
4. Recurso especial não provido. (REsp 1.484.304/DF, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/03/2016, DJe de 15/03/2016)

          Recentemente, esse entendimento foi confirmado pelo STJ:

 

AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE TERCEIRO EM AUTOS DE INVENTÁRIO. IMÓVEL PERTENCENTE À TERRACAP. PROTEÇÃO POSSESSÓRIA. DISPUTA ENTRE PARTICULARES. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. DECISÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
1. Embora não se possa falar em posse, mas mera detenção quanto ao bem público, no caso em que a disputa ocorre entre particulares, é possível se garantir uma proteção possessória àquele que demonstra estar autorizado a ocupar o bem.

2. Realmente, são duas situações que devem ter tratamentos bem distintos: aquela em que o particular invade imóvel público e almeja proteção possessória em face do ente estatal e a disputa possessória entre particulares no tocante a bem público. No último caso, é possível o manejo de interditos possessórios, em que pese a posse dos litigantes
estar situada em bem público.
3. No caso dos autos, em que a disputa da posse ocorre entre particulares a respeito de bem incluído em inventário, tem-se por juridicamente possível o pedido de proteção possessória formulado pelo embargante, ocupante do imóvel público.
4. Agravo interno não provido.
(AgInt no REsp 1324548/DF, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 08/08/2017, DJe 18/08/2017)

 

          Portanto, é possível o manejo de interditos possessórios em litígio entre particulares sobre bem público dominical, pois entre ambos a disputa será relativa à posse, sendo certo que não haverá alteração na titularidade dominial do bem, que continuará nas mãos do Estado, mantendo, desse modo, sua natureza pública.

            A título de fundamento, o STJ aduziu, em suma, que a ocupação por particular de um bem público abandonado/desafetado (bem dominical) - isto é, sem destinação ao uso público em geral ou à uma atividade administrativa -, acaba por conferir justamente a função social da qual o bem está carente em sua essência.

          Por fim, deve ser ressaltado, na linha do que restou ressalvado pelo STJ, que o entendimento deve ser compatibilizado com a regra que veda o reconhecimento da usucapião nos bens públicos (STF, Súm 340, CF, arts. 183, § 3°; e 192; CC, art. 102), permitindo concluir que este efeito jurídico da posse - a usucapião - é limitado, devendo ser mantida, todavia, a possibilidade de invocação dos interditos possessórios entre particulares.

          Em resumo:

Por último, de acordo com o STJ, quando se fala em bem de uso comum do povo, o particular é o usuário concreto do bem e, como tal, pode ser considerado como titular de direito subjetivo público. Em outras palavras, se o seu direito de utilizar o bem de uso comum for violado, seja por terceiro, seja pela própria Administração Pública, ele poderá defender o seu direito de usar o bem, seja na via administrativa ou judicial. Veja-se o precedente:

 

RECURSO ESPECIAL. DIREITO DAS COISAS. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO POSSESSÓRIA. ESBULHO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. REGULARIDADE DA REPRESENTAÇÃO PROCESSUAL. HARMONIA ENTRE O ACÓRDÃO RECORRIDO E A JURISPRUDÊNCIA DO STJ. PRESENÇA DOS REQUISITOS PARA A CONCESSÃO DA LIMINAR. REEXAME DE FATOS E PROVAS. INADMISSIBILIDADE. POSSIBILIDADE DO PEDIDO E LEGITIMIDADE AD CAUSAM. CONDIÇÕES DA AÇÃO. TEORIA DA ASSERÇÃO. POSSE DE BEM PÚBLICO DE USO COMUM. DESPROVIMENTO.
1. Ação ajuizada em 20/10/2010. Recurso especial interposto em 09/05/2011. Conclusão ao gabinete em 25/08/2016.
2. Trata-se de afirmar se i) teria ocorrido negativa de prestação jurisdicional; ii) a representação processual das recorridas estaria regular e se competiria ao recorrente a prova da irregularidade;iii) particulares podem requerer a proteção possessória de bens públicos de uso comum; e iv) estariam presentes os requisitos necessários ao deferimento da liminar de reintegração de posse.
3. Ausentes os vícios do art. 535 do CPC, rejeitam-se os embargos de declaração.
4. O reexame de fatos e provas em recurso especial é inadmissível.
5. As condições da ação devem ser averiguadas segundo a teoria da asserção, sendo definidas da narrativa formulada inicial e não da análise do mérito da demanda.
6. O Código Civil de 2002 adotou o conceito de posse de Ihering, segundo o qual a posse e a detenção distinguem-se em razão da proteção jurídica conferida à primeira e expressamente excluída para a segunda.
7. Diferentemente do que ocorre com a situação de fato existente sobre bens públicos dominicais - sobre os quais o exercício de determinados poderes ocorre a pretexto de mera detenção -, é possível a posse de particulares sobre bens públicos de uso comum, a qual, inclusive, é exercida coletivamente, como composse.
8. Estando presentes a possibilidade de configuração de posse sobre bens públicos de uso comum e a possibilidade de as autoras serem titulares desse direito, deve ser reconhecido o preenchimento das condições da ação.
9. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, desprovido.
(REsp 1582176/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/09/2016, DJe 30/09/2016)

          Portanto, o STJ também passou a entender que a posse de bens públicos de uso comum, como estradas e pontes, tanto pode ser defendida em juízo pelo Poder Público como pelos particulares que habitualmente se valem de ditos bens, pois a legitimidade, na espécie, é tanto para agir isoladamente como em litisconsórcio. Em outras palavras: o particular pode defender os bens de uso comum em juízo.


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Sobre o Autor

Pablo Freire Romão

Procurador do Município de Fortaleza (aprovado em 4º lugar antes da prova de títulos); Mestre em Direito e Gestão de Conflitos; Ex-Procurador do Estado do Maranhão (12º lugar). Membro da Associação Norte Nordeste de Professores de Processo (ANNEP). Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Autor do livro "Precedente judicial no novo Código de Processo Civil: tensão entre segurança e dinâmica do direito".